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domingo, 22 de junho de 2014

SOBRE A SENTENÇA


Pois é, acabei de perder minha filha.
De novo?
Sim, de novo.
E, de novo, a mesma filha!
Como pode alguém morrer duas vezes?
Ah, esqueça aquela coisa de que ela está viva no meu coração e todas aquelas frases feitas dos manuais que tratam o tema "como lidar com mães que perderam filhos".
Opa! Esses manuais não existem, tinha me esquecido!
Pois bem...
Há 3 anos e 3 meses eu a enterrei graças a um motorista imbecil e irresponsável que, por conta de sua imprudência (velocidade, falta de atenção ou o que diabos foi...), invadiu com seu carro o ponto de ônibus onde ela estava e a matou.
Essa parte da história todo mundo já sabe.
O que nem todo mundo sabe, além dos pais que enterraram seus filhos, é que, a partir do momento em que saímos do cemitério, começamos uma luta, cada um a seu modo, por aquela coisa que, embora já tendo ouvido seu nome, nunca havíamos precisado dela.
Ela?
Ah, sim: a justiça!
Aguardei 3 anos pelo julgamento do atropelador, e essa espera gera uma sensação que é mais ou menos como a de esperar um trem numa estação desativada: sabemos que existem trilhos ali, mas daí a ver o trem passar existe muita diferença!
Assim é nossa espera por justiça.
E sabe por que?
Porque não haverá, nunca, uma sentença satisfatória que penalize o assassino de um filho nosso, a menos que nos fosse permitido serrar-lhes braços e pernas com um serrote de marcenaria.
Ok! Isso não seria justiça, não é?
Dane-se!
Eu aceitaria o direito à vingança! Ótimo!
E digo mais: faria isso com excesso de prazer e ausência absoluta de remorso.
Sim, eu poderia viver com isso sem nenhum drama de consciência.
Mas as coisas não são assim, como bem sabemos...
Passei a me perguntar qual seria o valor da vida da minha filha de acordo com as nossas leis ordinárias.
A vida de um filho não tem preço, é fato!
Mas, no último dia 18, foi publicada a sentença dada ao animal que a matou e, dessa forma, como mais um produto a ser etiquetado numa prateleira de supermercado, o valor de sua vida fora determinado por uma lei que afaga a impunidade e que ri na cara das pessoas de bem: "condenado a 2 anos e 8 meses de detenção, sendo que a privação da liberdade fora substituída por serviços comunitários, pagamento de UM SALÁRIO MÍNIMO à uma creche conveniada ao fórum e suspensão da CNH pelo período de DOIS MESES e VINTE DIAS."
No dia 18/06/14, minha filha morreu de novo. E morreu envergonhada, tenho certeza disso.
Nessa mesma data, minha insanidade se multiplicou.
Esse é o tipo de condenação que não pune, mas que premia o criminoso.
E quanto a nós?
A nós, resta engolir uma sentença dessas, passar a vida tomando antidepressivos e correndo o risco de cruzar com o assassino dos nossos filhos na fila do cinema do shopping como se nada tivesse acontecido.
E, se pararmos pra pensar, para eles, com as bênçãos da lei, realmente nada aconteceu!


sexta-feira, 2 de maio de 2014

A AUDIÊNCIA


Audiência.

Esperei três anos por este dia.

O dia da audiência, para quem padece da dor da perda, é um divisor de águas.

Antes dela, ficamos a imaginar quão punido o culpado será, ainda que saibamos que a lei nos apunhale.

E sim, ela nos apunhala!

Nos apunhala a cada artigo, cada inciso, cada vírgula...

Hoje fui ao fórum.

Estava ciente de que, mesmo se tratando de uma audiência pública, muito provavelmente não poderia entrar na sala de audiência por não ser uma testemunha intimada.

Fui autorizada a permanecer dentro da sala somente durante o depoimento do pai da Bianca sendo que, após a finalização deste, ele também teria que se retirar para que o réu pudesse depor.

Preferi não entrar, pois esta parte da história eu já conheço.

Entendi a posição do juiz como uma preservação a ordem, afinal, o réu mentiria!

O juiz estava certo...

Até tentei argumentar que não me manifestaria, mas era mentira. Quem me conhece sabe muito bem que eu sairia no braço com ele ali mesmo na vara criminal.

O vi chegar com sua cara de assassino e com seu advogado, mas não fui vista.

Tornei a vê-lo quando o tiraram da sala onde ficam os réus que aguardam seus julgamentos e o encaminharam à sala de audiência.

Novamente não fui vista.

Saí dali, carregando comigo, todos os socos e arranhões que estavam reservados a ele.


Só me acalmei um pouco quando reconheci, na sala das tertemunhas de acusação, o policial que registrou a ocorrência e que foi até o hospital naquela noite conversar comigo.

Relembramos o episódio em que ele falava comigo dentro da emergência e eu só repetia:

"Se minha filha não sair andando desse hospital, vou matar aquele cara."

Que coisa... Ele se lembrava daquilo!

Cícero Pedro... Este é o nome do policial que, por alguma razão, em meio a tantas ocorrências nesses três anos, nunca se esqueceu de nós e nem da minha filha jogada naquela calçada.

Admitiu que, se estivesse em meu lugar, já teria cumprido a promessa que fiz...

Segurar a mão daquele homem naquele momento, abraçá-lo e agradecê-lo foi tudo o que pude fazer.

Não sabemos o que foi dito diante do juiz, assim como ainda não temos a sentença. Tenho até medo de ler quando esta for publicada...

Ali, no fórum, vi casos de crime de trânsito serem negociados pela defensoria pública em pleno corredor, onde o próprio réu escolhia qual das penas alternativas gostaria de cumprir:

- Serviços comunitários, doação de cestas básicas para a comunidade ou doação de sangue? - questionava a estagiária da defensoria.

Um réu, bem aliviado, disse que PREFERIA a doação de sangue, e assim a estagiária começou a fazer a anamnese encaminhada pelo hemonúcleo pra saber se o infrator poderia ser enquadrado como doador.

Diante de tudo o que passei até agora, muita coisa aprendi.

Talvez a coisa mais importante tenha sido que nunca devemos deixar as pessoas sozinhas, principalmente quando elas precisam de ajuda.

Outra coisa é que, pessoas que precisam de ajuda, NUNCA a pede com palavras.

Portanto, vamos abrir os olhos e o coração para a dor do outro e nos fazer presentes à medida que isso for possível.

Muito obrigada a todas as mulheres envolvidas na campanha #NãoFoiAcidente, minhas amigas de luta, solidárias e parceiras que, mesmo com toda a dor que carregam, ainda conseguem abraçar a dor do outro.

Vou repetir uma coisa que escrevi um dia aqui no blog e que, a cada dia, acredito mais e mais:

"A mão mais amiga é, muitas vezes, uma mão anônima."

Assim que sair a sentença, vou dividir com aqueles que se preocuparam comigo e que, de alguma forma, se fizeram presentes no dia de ontem.

Muito obrigada!


(À minha mãe, vou fornecer o endereço do fórum caso um dia ela tenha um lampejo de interesse por este assunto e resolva saber "no que deu" a morte da neta dela.)