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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

PALAVRAS DE ALGUÉM QUE ATROPELOU


Dois meses após a morte da Bianca, recebi um email de uma leitora desconhecida.
Para minha total surpresa, se tratava de uma pessoa que vivera o lado inverso do atropelamento.
Ela, cujo nome não importa, foi a motorista envolvida num atropelamento que tirou a vida de uma menina de 18 anos.
Não serei, aqui, 'advogada' de defesa ou acusação.
Apenas gostaria de compartilhar com vocês este relato que considero forte e corajoso:



"Olá, li seu blog inteiro hoje de noite e resolvi escrever pra ver se consigo te dar algum tipo de tranquilidade frente ao que aconteceu com sua filha.

Peço, antes de me julgar, de me responder ou até de publicar esse email, que leia até o final o que eu tenho pra te dizer.

Hoje, falo pra você como uma mãe também.

Me tornei mãe há exatos 19 dias e, só a partir daquele momento, pude mensurar o que é a dor de perder um filho.

Não, comigo não aconteceu algo assim!

Mas fui a outra parte.

Essa mesma parte que é motivo do teu ódio hoje.

No final do ano de 2004, fui o motivo de ódio de outra mãe.

Veja, não quero sob hipótese alguma defender quaisquer pessoas. Quero só que você leia...

Naquele dia, eu atropelei uma menina que acabara de fazer 18 anos.

Não sei como foi o acidente da Bianca mas, no meu caso, eu estava na BR, indo pra faculdade (eu com 21 anos) quando aconteceu.

Meu carro era novo, eu não estava bêbada, nem drogada, nem rápido demais, nem nada errado.

Mas eu fui o veículo que ligou a vida e a morte de uma menina com todo o futuro pela frente.

Você deve estar se perguntando o por quê de estar te contando isso.

Queria só que você soubesse que eu, do outro lado, também sinto!

Chorei imensamente quando li seu blog não só de emoção me colocando no lugar de uma mãe, mas também porque entendi o sentimento que causei mesmo que acidentalmente (se quiser te mostro todo meu processo criminal e cível.

Depois daquele dia eu não dormi mais. Depois daquele dia, viver, pra mim, se tornou obrigação.

Eu não sei como se sente o dono do teu ódio, mas te digo com propriedade que se ele for como eu, dotado de sentimentos, de dores e do mínimo de entendimento do que é ter um filho, a tua vingança já é presente e equivalente à tua dor.

Veja, te digo isso como mãe.

Eu sou mãe.

E sou "assassina" aos olhos de outra mãe.

E meu sentimento é proporcional...

Amo incondicionalmente minha filha, odeio igualmente aquele dia e todos os outros que se seguiram depois dele.

Eu sofri e sofro até hoje por aquele dia.

Sofri por estar ali, sofri por mim, por ela e pela mãe dela.

Sofri por eu ser incapaz de mudar os fatos.

Sofri e sofro porque daria, sem sombra de dúvidas, a minha vida no lugar da dela, pois assim ela viveria (eu apenas sobrevivo).

Não quero retirar de você qualquer sentimento em relação àquele homem. Quero só que você saiba que se ele for capaz de sentir alguma coisa, ele já está pagando pelo acontecido.

Não quero colocar ninguém como vítima no lugar de réu.

Mas que o teu desejo dele colocar uma corda no pescoço e se pendurar numa árvore é menos válido do que ele continuar vivendo.

Eu desejei a morte todos os dias até minha filha ser concebida. E esse desejo é o que consome, o que acaba com a gente.

Garanto que ele tá pagando pelo que fez.

Se ele é culpado? Não sei, mas só sei que se ele sente, o sentimento dele tá fazendo ele pagar por tudo, tenha certeza.

Espero que tenha entendido o que eu quis te passar.

Te entendo como mãe... Juro que entendo!

Só quero que você consiga ver que não precisa de absolutamente desejo nenhum seu para que ele sofra: se ele é digno, ele já está.

Isso vai fazer com que você consiga transformar tua falta em saudade. E saudade não dói. Assim você não alimenta mais esse rancor que te consome e dá espaço somente pros sentimentos referentes à sua filha.

E é bem mais saudável...

Na verdade eu nem acho que você deva se colocar no lugar dele nesse momento, mesmo porque você vive uma fase de luto e seria anormal não ter um sentimento de revolta.

Acredite, eu que passei por isso na situação inversa não condeno jamais nem você e nem a mãe da ‘minha menina’ em me chamar de assassina, de pensar assim e de querer um culpado.

Independente de quem é a culpa, nós sobrevivemos e isso causa sim uma revolta.

Eu entendo perfeitamente a mãe dela querer me ver da pior maneira possível. Entendo a mãe dela me odiar.

Talvez não seja nem ódio por mim, mas por eu estar ali, por ter sido através de mim que ela foi separada da filha.

E eu acho válido esse sentimento, mesmo porque não acredito que sentimentos ruins sejam de todo mal assim...
Talvez seja melhor eu ser a culpada na visão dela do que ela mesma se culpar...

A justiça demorou 5 anos pra entrar com o pedido no Ministério Público pra investigar o meu acidente.

Não sei como está com você, só sei que essa demora dilacera a gente, pois nós, dos dois lados, queremos respostas e uma definição.

Fui processada civilmente pela família dela e, felizmente pra mim, ganhei a ação porque a quantia que me pediam era simplesmente absurda (em torno de 500 mil reais se fôssemos juntar as custas de advogado e indenização).

Infelizmente, nunca pude dar pra essa mãe sequer um telefonema dizendo que eu também sinto.

Fui proibida pelo meu advogado de entrar em contato com eles pois sofri ameaças.
Se ele é culpado, ele vai pagar por isso, tenha certeza.

Talvez não na justiça daqui, mas da própria consciência.

Independente dele estar em perfeitas condições, se houve um único erro, esse não vai deixar com que ele durma tranquilamente em nenhum outro dia da vida dele.

E pagar, assim, já é o pior dos castigos.

Concordo com você que corremos o risco de acidentes a todo momento.

Mas isso não tira nossa responsabilidade sobre isso.

Veja, eu to te falando como alguém que atropelou, não como alguém querendo ser vitima!

Eu me responsabilizei e acho que ele também deve.

Pra nós, a parte ruim da historia toda, faz até bem ter essa responsabilidade. Assim a gente tem o mínimo de consciência para atos futuros.

Independente de culpabilidade, é importante a gente ter responsabilidade.

Queria te deixar claro que se você resolver abrir um processo, tem todo o meu apoio.

Isso vai criar em você algumas feridas mas, ao mesmo tempo, talvez te traga algum conforto. Não em questão financeira, mas em questão de responsabilidade mesmo.

Também não acho que você vai ter que assimilar que foi um acidente porque a versão dele pode ser comprovada. É o que eu te disse, no meu caso, eu não estava bêbada, nem drogada, minha velocidade era de 77 km/h na BR onde o máximo era 80 km/h, meu carro era novo, estava chovendo, e ela atravessou em local errado a BR.

Se você for analisar pelo meu lado, eu penso que se alguém teve culpa, foi ela. Mas veja bem, ‘eu’ penso. Não precisa ninguém mais pensar...

Isso me conforta em saber que não fui imprudente.

Mas, para a família dela, eu sempre vou ser a assassina, a culpada.

E que mal há nisso?

Caso você se sentir mais confortada em pensar assim, também não vai haver mal algum.
Sinceramente, não acredito que a minha dor seja maior que a sua.

Deus que me perdoe, mas eu escolho passar por um acidente assim mais 20 vezes do que algo acontecer com a minha filha.

Como você disse, é muito recente.

Mas não se engane que as coisas passam...

Na verdade, a gente aprende a conviver com isso tudo. E você ainda não está na fase de aprendizado.

Continue expressando a tua dor, porque mesmo sem você imaginar, está ajudando pelo menos uma pessoa.

Eu me sinto ajudada por você.

E, por isso, só tenho a te agradecer."